Misticidade, perversidade e sacralidade

por Catharina Gaidzinski

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Por conta de estereótipos de gênero, o ser feminino foi, durante a história, inúmeras vezes afastado da associação entre sentimentos de raiva ou libertação, emoções que os homens sempre tiveram o direito, e, discutivelmente, até a necessidade de exprimir. Ao longo dos séculos, quando as mulheres se mostraram libertárias, tanto sexual, quanto emocional e intelectualmente, eram chamadas de bruxas e até queimadas até a morte, como durante a Inquisição.

Similarmente, durante a evolução da psicanálise, quando as mulheres se mostraram irritadas, nervosas ou tristes, muitas vezes eram intituladas de neuróticas ou histéricas, além de medicadas e internadas, como previsto inúmeras vezes pelos estudos de psicanalistas como Charcot, Freud e Lacan. Vera Pollo, autora do livro “Mulheres Histéricas”, diz que, ao longo da história da medicina ocidental, houve a presença de vários discursos acerca de assuntos femininos, sobretudo em relação às mulheres malditas, insanas, loucas e bruxas. Foram esses discursos os principais responsáveis por tornar a condição do “ser mulher” um assunto da esfera pública e, consequentemente, sintomático e reduzido a estereótipos: tanto sagradas ou mistificadas, quanto demonizadas ou simplesmente consideradas insignificantes. Sempre alvo de discrminação, a mulher foi sempre o “outro” sexo, o gênero inferior ou perverso.

Foto: Reprodução.

Na Grécia Antiga, a menstruação feminina era considerada sagrada — já que as mulheres eram endeusadas como seres místicos e férteis. Por outro lado, durante a Idade Média, a menstruação foi demonizada, significando a possessão da mulher por um demônio, o que instigou as acusações recorrentes de bruxaria e perversidade. Paralelamente, as mulheres também foram vistas como servas, curandeiras, mães e conservadoras naturais da família pelo Cristianismo, através da santificação e a canonização dessas figuras, como, por exemplo, a Madre Teresa de Calcutá. É inegável que esses estereótipos foram criados e difundidos por sociedades patriarcais e machistas, a fim de conservar o poder que os homens detinham na época, além de segmentar e afastar as mulheres de posições de poder ou liberdade.

Em relação à condição feminina, Aristóteles diz que a catamenia, ou menstruação, existiria somente por uma impossibilidade da mulher de possuir energia suficiente para eliminar as toxinas presentes nos alimentos, portanto, necessitando de uma expulsão mensal do que não foi aproveitado pelo corpo. Segundo ele: “A fêmea é, por assim dizer, um macho mutilado, e a catamenia é sêmen, só que não puro; pois há apenas uma coisa que elas não têm nelas, o princípio da alma”.

O patriarcalismo foi fundado na nossa sociedade há milhares de anos e, inclusive, é pregado por diversas religiões. No Cristianismo, de um lado, temos Eva, mulher que surgiu da costela de Adão, e que foi apresentada pela bíblia como a pecadora original, ao cair na tentação de comer o fruto proibido e os expulsar do paraíso. Os filósofos Heinrich Kraemer e James Sprenger, autores do livro “O Martelo das Feiticeiras”, ou “Malleus maleficarum”, de 1487, manual escrito durante a Inquisição, relacionam os pecados de Eva às bruxas da Idade Média, atribuindo a perversidade feminina à prática da bruxaria, que aconteceria em decorrência da copulação com o demônio. Por esse motivo, o “pecado original’’ foi um fardo que as mulheres tiveram de carregar até o século XVII, a partir de argumentações acerca da propensão natural feminina à maldade.

“Homens têm culpado as mulheres desde que Adão culpou Eva”.

Foto: Reprodução.

“Homens têm culpado as mulheres desde que Adão culpou Eva, e aquele modelo feminino como tentação e masculino como incapaz de resistir ou não responsável pela resistência está por trás disso. O desejo masculino, nós somos ensinados, é como a natureza, algo que eles não podem controlar, e as mulheres têm a responsabilidade de não provocar a natureza”, explica Rebecca Solnit, autora do livro “Os Homens Explicam Tudo Para Mim”, em entrevista ao Estadão em 2017.

Do outro lado, temos a figura de Maria, mãe das mães, virgem, pura e santificada, com o intuito único de criar, preservar e obedecer. “A ideologia machista incorpora dois arquétipos de ser mulher enquanto um ser para o homem: Eva, sedutora e Maria, a mãe. A primeira para encantar o homem e a segunda, para gerar os filhos do homem; ambas para servi-lo”, exemplifica Maria Amélia Azevedo, em seu livro “Mulheres Espancadas: A Violência Denunciada”, de 1985.

A mulher: o ser defeituoso

Foto: Reprodução.

No entanto, até hoje, é difícil explicar a dominação masculina, a submissão da mulher, a misoginia e a aversão ao sexo feminino a partir de um caráter não biológico ou pré-estabelecido. Em relação às mulheres e tentação, Tertuliano, teólogo pioneiro do Cristinismo, escreveu em “De Cultu Feminarum”: “Você é a porta do demônio. É quem quebrou o selo daquela árvore proibida. É a primeira desertora da lei divina. Destruiu a imagem de Deus, o homem. Por causa de sua deserção, até o Filho de Deus teve de morrer”.

Naquela época, considerava-se que a mulher era a tentadora do homem e tinha nascido a partir de um “pensamento defeituoso”, e, por esse motivo, não era capaz de raciocinar. Mas esse julgamento ainda nos assombra. Podemos exemplificar essa concepção de inferioridade do feminino ainda enraizada na nossa cultura por meio da fala do presidente Bolsonaro em palestra na Hebraica, no Rio de Janeiro, em 2017 : “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”. Ou seja, mesmo que exista um abismo gigantesco de tempo entre as falas de Aristóteles e Bolsonaro, opiniões machistas e misóginas continuam a permear nossa sociedade.

Em relação ao divórcio feminino na França — legal a partir do ano de 1792, mesmo com alguns retrocessos posteriores — e a inferioridade da mulher, Pierre-Joseph Proudhon escreveu no século XIX, em seu livro “A Pornocracia ou as Mulheres nos Tempos Modernos”: “É uma vergonha para a nossa sociedade, um sinal de deficiência, que a mulher possa exigir o divórcio por incompatibilidade de temperamento ou violências do marido. Não importa quanto ódio deste, imoralidade, incapacidade, vícios grandes e sem motivo, a mulher que se queixa deve ser considerada culpada e mandada de volta a seus afazeres domésticos. […] Se o homem recebeu a superioridade da inteligência sobre a mulher, é para usá-la. Inteligência e caráter obrigam. Se ele recebeu a superioridade da força, é também para exercer, por meio dela, os direitos. Força tem direito, força obriga”.

“Se o homem recebeu a superioridade da inteligência sobre a mulher, é para usá-la”.

A lista de homens que acreditavam que a mulher tinha que aguentar qualquer coisa dentro de um casamento não é curta. Acreditava-se, até pouco tempo atrás, que a mulher que traía o marido deveria receber punições graves, enquanto o mesmo tinha o direito de procurar outras parceiras extramaritais. “Os saxões enforcavam a mulher adúltera e a queimavam. Os egípcios cortavam-lhe o nariz. Os romanos, graças à lei Júlia, cortavam-lhe a cabeça. Hoje, na França, quando uma mulher é flagrada cometendo adultério, zomba-se do marido dela”, diz Alphonse Karr, no livro “Une poignée de vérités, mélanges philosophiques”, publicado em 1853.

Pouco tempo depois, em 1893, Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, escreveram no livro “A Mulher Delinquente: A Prostituta e a Mulher Normal”: “Sendo a mulher natural e organicamente monógama e frígida, explicam-se as leis contra o adultério, que se aplicam somente à mulher e não ao homem. […] De fato, o que para o homem não constitui sequer uma contravenção, para a mulher é um crime gravíssimo”.

Infelizmente, a condição de submissão da mulher ao homem ainda é muito comum ao redor do mundo, por meio da escravidão domiciliar feminina que permeia até hoje em variadas culturas, como em diversos dos países do Oriente Médio, através do casamento arranjado e infantil. De acordo com o Alcorão, livro sagrado do Islamismo: “Os homens são superiores às mulheres porque Alá outorgou-lhes a primazia sobre elas. Portanto, dai aos varões o dobro do que dai às mulheres. Os maridos que sofrerem desobediência de suas mulheres podem castigá-las, deixá-las sós em seus leitos, e até bater nelas”.

Segundo “O Código de Manu”, livro sagrado da Índia: “A mulher deve adorar o homem como a um deus. Toda manhã, por nove vezes consecutivas, deve ajoelhar-se aos pés do marido e, de braços cruzados, perguntar-lhe: ‘Senhor, que desejais que eu faça?’ Mesmo que a conduta do marido seja censurável, mesmo que este se dê a outros amores, a mulher virtuosa deve reverenciá-lo como a um deus. Durante a infância, uma mulher deve depender de seu pai, ao se casar de seu marido, se este morrer, de seus filhos e se não os tiver, de seu soberano. Uma mulher nunca deve governar a si própria”.

“A mulher deve adorar o homem como a um deus”.

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Aristóteles utilizou a superioridade masculina para tentar explicar a submissão das mulheres em relação aos homens. Junto a Platão, ele argumentou que a mulher seria um erro da natureza, e que somente o homem seria um ser humano completo. Por esse motivo, as mulheres estariam à par da escolha masculina, podendo ser discriminadas, violentadas e até assassinadas. São Tomás de Aquino, grande figura da Igreja Católica, também disse: “No que diz respeito à natureza, a mulher é defeituosa e malnascida”. Alexandre, o Grande, no século IV a.C., expôs algo parecido: “A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem inferior”.

“A mulher é defeituosa e malnascida”.

Pierre Bourdieu, sociólogo francês autor do livro “A Dominação Masculina” (1998), expõe os erros de pensamento da sociedade que influenciaram a dominação sobre as mulheres: “O princípio a inferioridade e exclusão da mulher, que o sistema mítico-ritual ratifica e amplia, a ponto de fazer dele o princípio de divisão de todo o universo, não é mais que a dissimetria fundamental instaurada entre o homem e a mulher no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado matrimonial, que estão na base de toda a ordem social: as mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens”.

Ao analisar o fenômeno da dominação masculina sobre as mulheres amplamente institucionalizado na nossa ordem social, Bourdieu defende que fomos ensinados a apenas aceitar a força dessa dominação, sem nos questionar o porquê disso ter sido estruturado dessa maneira, além de não refletir o suficiente sobre os efeitos negativos dessa ordem social. “Sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação”, explica.

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Bourdieu também desmascara o estereótipo da mulher como um ser discreto, frágil e pequeno, em detrimento da grandiosidade e virilidade do homem, como uma das maneiras que a sociedade encontrou para explicar a dominação masculina, inclusive a partir da imposição de vestimentas específicas às mulheres. De acordo com ele: “Essa espécie de confinamento simbólico é praticamente assegurado por suas roupas e tem por efeito não só dissimular o corpo, sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicitamente: ora com algo que limita de certo modo os movimentos, como os saltos altos ou a bolsa que ocupa permanentemente as mãos, e sobretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de atividades (a corrida, algumas formas de se sentar, etc)”.

No entanto, Bourdieu é exceção. As insinuações machistas acerca da condição de mulher não são incomuns, e, por muito tempo, foram amplamente disseminadas e aceitas. O livro “Dicionário Machista — Três mil anos de frases cretinas contra as mulheres”, da doutora em Literatura Portuguesa, Salma Ferraz, reúne, de forma humorada e perspicaz, inúmeras barbaridades proferidas ao longo da história contra as mulheres, nos ajudando a compreender a razão por trás dessas atitudes e falas e ajudando a desmascarar o preconceito incrustado nelas.

“Achei que, reunindo as frases num dicionário, poderíamos ter uma ideia mais seletiva do que os homens pensam sobre as mulheres e até mesmo do que as mulheres pensam sobre si mesmas. Mas o principal motivo é mostrar a estupidez e a irracionalidade do machismo” explica Salma ao portal Donna, em 2013. O livro de Carneiro Portela, “Máximas, Adágios e Legendas de Caminhão” (1980), também reproduz alguns ditados populares que exemplificam a depreciação da condição de mulher, como: “Mulher é como carne, só amacia quando apanha”, “Quem manda na casa é ela, mas quem manda nela sou eu” e “Mulher ciumenta e piolho eu mato na unha”.

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Paul Stoller, no livro “The Taste of Ethnographic Things”, aponta que o homem comum possui atividades como: tornar mulheres fetiches, desconsiderar suas atividades e tratá-las com violência. É fato que, até mesmo hoje em dia, muitos homens ainda não amam as mulheres, mesmo se relacionando com elas. “Eu tenho a impressão de que homens admiram muito homens, mas eles não conseguem admirar mulheres”, afirma Juliana Altoé, multinstrumentista e frontwoman da banda de indie paulista The Zasters. Evidentemente, os homens só aprendem a apreciar outros homens, e vêem a mulher com um único intuito: o sexo. Como disse Charles Chaplin no filme “Monsieur Verdoux” (1947): “Amo as mulheres, mas não as admiro”.

“Eu tenho a impressão de que homens admiram muito homens, mas eles não conseguem admirar mulheres”.

“Dizer que um homem é heterossexual implica somente no fato de que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que diz respeito ao amor, a maioria dos homens heterossexuais reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram, respeitam, adoram, reverenciam, a quem honram, imitam, idolatram e formam profundos vínculos, a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender, e cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam, essas são, esmagadoramente, outros homens. […] Das mulheres querem devoção, serviço e sexo’’, explica a filósofa feminista estadunidense Marilyn Frye.

As bruxas da Inquisição

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Outro fato histórico que ajuda a explicar a misoginia da sociedade ao longo do tempo e a aversidade à independência feminina foi a caça às bruxas, um movimento religioso e de genocídio predominantemente feminino que ocorreu a partir do declínio do Feudalismo, no século XIII. Nessa época, ocorreu o êxodo rural, e, à medida que os camponeses conquistavam mais poder, as mulheres também assumiam mais liberdade e responsabilidade para além somente do cuidado com o domicílio e a manutenção da família, conquistando postos como parteiras, enfermeiras, pedreiras, vendedoras e até médicas informais. Essa nova liberdade feminina incomodou muito a sociedade da época, que achou inúmeros motivos para acusar essas mulheres mais libertárias de bruxaria.

Além disso, as mulheres eram consideradas mais fracas, e, consequentemente, mais suscetíveis à tentações diabólicas. Mas a ligação com a condição de mulher e o satanismo ou a maldade é muito antiga. De acordo com o historiador britânico Malcolm Gaskill, em seu livro “Witchcraft: A Very Short Introduction” (2010), em tradução livre: “Os corpos das mulheres eram considerados inversões ou corrupções do ideal masculino, suas constituições, instáveis e seus desejos, ameaçadores. […] As ligações entre as mulheres e a feitiçaria datam desde a Antiguidade. Magas perversas eram conhecidas dos egípcios e babilônios. Os sumérios temiam Lilitu, — a hebraica Lilith — um demônio que gritava dentro da pele de uma mulher estéril e invejosa. Textos clássicos também desenvolveram o tema: as bruxas ladras de corpos descritas por Horace eram mulheres; Homer contou como a feiticeira Circe transformou os marinheiros de Odisseu em porcos e o ensinou a conversar com os mortos. Medéia, objeto da tragédia de Eurípedes, era conhecida por vários atos maléficos, incluindo matar um rival amoroso com um manto mágico. Ela também foi uma sacerdotisa de Hécate, aquela deusa malévola que, com Circe, foi o modelo saliente da bruxa na Renascença. A bíblia também apresentava um número de feiticeiras, como a famosa ’Bruxa de Endor’, que invocou o espírito de Samuel para Saul”.

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Lá na época da Idade Média, existiam mulheres que enfrentavam o patriarcado e não se comportavam como os padrões de gênero da época esperavam. Muitas eram curandeiras, médicas e parteiras e possuíam conhecimento sobre plantas medicinais e acerca do corpo feminino. Quando se reuniam, faziam consultas e passavam os conhecimentos umas às outras, o que desafiava tanto as normas sociais vigentes e patriarcais, quanto a compreensão científica duvidosa da época e o poder divino, que dizia que ninguém podia alterar o curso das coisas a não ser Deus. Essas atividades femininas, portanto, eram consideradas ilegais e, consequentemente, também práticas de bruxaria. De acordo com Malcolm Gaskill: “As mulheres atraíam muita desconfiança da Igreja. Quando se mostravam habilidosas para lidar com a vida, seja preparando medicamentos ou atuando como parteiras, faziam os bispos irem à loucura”. Até fenômenos naturais, como colheitas ruins, epidemias e secas, eram pretexto para a culpabilização de bruxas.

Segundo Barbara Ehrenreich e Deirdre English, ativistas feministas e autoras do livro “Bruxas, Parteiras e Enfermeiras”, de 1984, o surgimento da caça às bruxas, no entanto, não foi um fenômeno espontâneo, mas uma campanha de terror estabelecida pela Igreja e pela classe dominante para acusar e matar mulheres que funcionavam como ameaças contra essas entidades. Assim, foi criada uma histeria premeditada na população para que entregassem qualquer mulher conhecida que desafiasse as normas da sociedade vigente através da manifestação de interesse ou conhecimento em medicina, política ou religião, acusando-as de um “pacto com o diabo”. Um exemplo disso foi Joana d’Arc, camponesa francesa que conduziu o exército francês contra a ocupação inglesa da Guerra dos Cem Anos, e que foi julgada como bruxa e queimada numa fogueira em praça pública no ano de 1431.

Joana d’Arc. Foto: Reprodução

Outro caso memorável e bem conhecido de perseguição às bruxas na história foi o julgamento das Bruxas de Salém. Em 19 de agosto de 1692, na vila colonial de Salém, no interior do estado de Massachusetts, nos EUA, cerca de 200 pessoas foram acusadas de bruxaria, das quais, dezenove foram condenadas à morte. “Depois de várias semanas de tortura, as mulheres confessavam práticas indescritíveis, como beijar ânus de gatos, beber sangue humano ou sacrificar crianças recém-nascidas”, comenta Malcolm Gaskill.

Os julgamentos só cessaram quando William Phips, governador da província de Massachusetts, cuja esposa também estava sendo acusada de bruxaria, recebeu uma mensagem do presidente da Universidade de Harvard, que dizia: “É melhor que dez bruxas suspeitas escapem do que uma pessoa inocente seja condenada”, e decidiu decretar o fim dos julgamentos. E, embora o Tribunal Geral de Massachusetts tenha posteriormente anulado os vereditos de culpa contra as bruxas acusadas e concedido indenizações às suas famílias, a amargura permaneceu na comunidade, e o doloroso legado dos julgamentos das bruxas em Salem durou séculos.

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A caça às bruxas pela Inquisição durante a Idade Média, como um todo, durou mais de quatro séculos e foi responsável pela acusação e assassinato de aproximadamente nove milhões de pessoas, das quais 80%, ou sete milhões, eram mulheres. Isso mostra a clara intenção da classe dominante e da Igreja de conter o avanço de poder e do conhecimento feminino, utilizando meios de comunicação em massa para convencer a população a entregar mulheres desviantes e, então, exterminá-las.

A histeria e as doenças do útero

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Similarmente, durante o século XIX, o diagnóstico de histeria assombrou as mulheres da época, funcionando como uma forma adicional de controlá-las, tanto em suas sexualidades, como em suas independências e direitos de opinião. Por mais que a histeria tenha sido um grande passo para desmistificar a feminilidade na psicanálise, principalmente quando Sigmund Freud se disponibilizou para escutar essas mulheres histéricas, o diagnóstico machista foi reflexo do que ocorria na época: mulheres com sofrimentos reais, em decorrência do machismo estrutural, que estavam infelizes com a sociedade, com seus casamentos, com suas vidas sociais e com o fato de que suas opiniões não importavam.

A histeria teve seus primeiros relatos com Hipócrates em IV a.C. como uma doença de caráter exclusivamente feminino, tendo suas causas atribuídas à presença do útero e suas movimentações dentro do corpo da mulher. O termo histeria vem do gredo hystera, que significa útero. Os estudos de Hipócrates consideraram a histeria como a capacidade do órgão de se deslocar e causar sufocação, sobretudo quando a mulher não fazia sexo, já que o útero ficava mais leve e, consequentemente, mais suscetível a se movimentar. Já Platão, na mesma época, trouxe a ideia de que o útero de mulheres estéreis ficavam irritados e causavam a obstrução da passagem do ar e doenças, já que ele havia sido criado com o único intuito de conceber bebês e, por esse motivo, deveria ser ativo e fecundado.

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De acordo com as teorias de Freud, principalmente distribuídas em seu livro co-escrito com o psicanalista Josef Breuer, “Estudos Sobre a Histeria” (1895), a doença era caracterizada como um distúrbio feminino e funcionava como uma maneira de as mulheres lidarem com a castração da infância, assim, substituindo o que deveria ser uma satisfação sexual por sintomas e patologias, como: pânico intenso, paralisias, afasias, perda de sentidos e até convulsões.

Freud reconhece que a histeria, tipo de neurose feminina, se distancia da neurose mais comumente associada aos homens, a neurose obsessiva. Este modelo de patologia seria destinado a indivíduos que apontam sintomas de obsessão sexual e perversão. É visível a diferença entre as categorias de neurose previstos por Freud: uma se caracteriza através da passividade, da castração simbólica, do bloqueio dos instintos sexuais femininos — já que a sexualidade feminina não era considerada algo natural até então — e a outra, através da atividade e da obsessão masculina com a sexualidade. Similarmente, Lacan utiliza da castração como condição para a feminilidade, atribuindo a foraclusão — ou rejeição — como mecanismo fundamental para o surgimento da psicose.

Por mais que a histeria devesse tratar a fundo questões da psique feminina, de acordo com as primeiras propostas de Freud, ela baseou-se em condições, estigmas e perspectivas machistas e patriarcais, atribuindo emoções mais fortes como angústia, irritação e nervosismo à patologias inerentemente femininas. Para a maior parte dos psicanalistas, as inferioridades anatômicas e sexuais da mulher foram suficientes para explicar sua represália, sua submissão histórica, seu caráter passivo e até sua neurose. Freud, mesmo que desse a entender que colocava a sua teoria falocentrista como cúmplice da neurose feminina, foi o primeiro a realmente se disponibilizar a ouvir as mulheres e seus dramas e opiniões sexuais, diferentemente, por exemplo, de Charcot e Breuer.

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Mesmo assim, os estudos acerca da saúde da mulher, tanto psíquica quanto física, sempre foram realizados por homens ao longo da história, e isso ajuda a explicar porque as teorias sobre a condição feminina tendem a demonizar nossos corpos, vontades, opiniões e independências. Por mais que tal doença tenha adotado diferentes interpretações ao longo da história, ela sempre se pautou em questões machistas e misóginas, que consideravam o corpo da mulher como algo ruim ou autodestrutivo. Desse modo, qualquer mulher que desviasse do que era considerado comum para a época, como através da negação do casamento e da reivindicação dos direitos de estudo e trabalho, poderia ser considerada histérica.

Durante os séculos XIX e XX, a histeria feminina foi o diagnóstico psiquiátrico e psicanalítico mais comum para as mulheres. Na medicina ocidental, essa patologia era considerada crônica entre o gênero feminino. Dentre as técnicas utilizadas para a cura da histeria estavam as internações forçadas em manicômios, o uso de camisa de força, terapias de choque e até a extirpação do útero, soluções meramente temporárias, redutoras e, indubitavelmente, controladoras.

E hoje em dia?

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Até hoje julgamos mulheres que demonstram sentimentos absolutamente normais, como raiva e irritação, como desequilibradas, e é possível que esse fato seja um reflexo do diagnóstico em massa da histeria no passado. Em 2016, a ex-presidente Dilma Rousseff sofreu inúmeros ataques pelo simples fato de ser uma mulher comandando uma nação. Na capa da revista Istoé, na edição do mês de abril do mesmo ano, lia-se: “As explosões nervosas da presidente”, com as chamadas “os surtos de descontrole” e “[ela] perde as condições emocionais para conduzir o país”. No rock, isso funciona de forma parecida. As mulheres que têm vontade de adentrar o gênero, que sempre foi estigmatizado como algo ruim, violento e até demoníaco, são tratadas como anormais e problemáticas, principalmente por possuírem comportamentos apenas esperados dos homens e que se distanciam das atividades passivas e relacionadas ao lar.

Não obstante, coletivos feministas, páginas do Facebook, threads do Twitter, blogs e ativistas se manifestaram contra a capa da revista com a hashtag #IstoÉMachista, que apontava o caráter misógino e machista da publicação. Muitos veículos também compararam a capa da Istoé com capas antigas de outras revistas, como uma edição da Revista Época de 2010, que usava o termo “O Dom de Fúria” ao referir-se ao técnico Dunga e seus ataques de raiva durante a Copa do Mundo.

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A revista digital AzMina publicou, também em 2016, uma matéria intitulada “Afinal, por que a capa da Istoé é machista?”, na qual as redatoras da equipe trouxeram análises muito interessantes e perspicazes em relação à discussão: “A ciência nos classificou como histéricas para não ter que responder socialmente por nos fazer infelizes e sexualmente frustradas diante de um mundo opressor com o sexo feminino e outras identidades de gênero minoritárias. As empresas nos chamam de “emocionalmente frágeis” demais para liderar. Agora, a história nos chancela, na figura de nossa primeira presidenta, como loucas, raivosas e desequilibradas. […] Mas quando algo parecido foi usado contra homens? O próprio técnico da seleção brasileira, Dunga, teve sua fúria elogiada em uma capa da revista Época, por exemplo. Na TV Senado, deputados homens saem aos tapas e não rendem capas assim. Jair Bolsonaro chegou a agredir fisicamente Maria do Rosário sem render uma capa assim. Se isso não é estereótipo seletivo, o que seria?”

Em outra matéria do portal publicada no mesmo ano, Nana Queiroz, jornalista do coletivo feminino, foi cortante, direta e sagaz ao escrever sobre os dois estereótipos que temos sobre as mulheres na nossa sociedade: a submissa e a histérica, comparando o que foi falado sobre Marcela Temer, esposa do ex-presidente Michel Temer, numa matéria da revista Veja — cuja capa dizia “Marcela Temer: Bela, recatada e ‘do lar’” — ao que era falado sobre a ex-presidente Dilma nos veículos jornalísticos: “Juro que, ao ler a chamada da reportagem da Veja sobre a possível futura primeira dama Marcela Temer, senti uma sensação de náusea — física mesmo, tive que tomar um Dramin. Os adjetivos ‘Bela, recatada e do lar’ são, claramente, uma cutucada na presidenta Dilma Rousseff, ofendida frequentemente por muitos — e principalmente por Veja e seus leitores — com os adjetivos ‘feia, mandona e intrometida na esfera pública’”.

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Mais para o final do artigo, Nana escreve sobre os double standards — em português, padrões duplos, significa uma regra ou princípio que é injustamente aplicado de maneiras distintas a pessoas ou grupos diferentes — que são utilizados pela mídia quando comparamos o que é falado sobre gestores homens e gestoras mulheres, além do machismo ainda muito presente na sociedade contemporânea: “O brasileiro xinga Dilma de palavrões machistas em vez de criticar sua incompetência como gestora. […] Pintam-na de histérica em capa de revista, de ‘sapatona’ (como se isso fosse uma ofensa). […] Deputados acreditam que lugar de mulher é em casa e não na política. Pior: acreditam que as mulheres só podem encontrar a felicidade desta maneira. Sua mentalidade estreita não possibilita que percebam que nós, mulheres, existimos em todos os tamanhos e formas e atendemos a diversos modelos de felicidade.”

Após concluir a reflexão, Nana deixa uma mensagem às mulheres brasileiras: “Que a gente aprenda a viver num mundo em que nem Marcela nem Dilma sirvam de modelo imposto. Mas que a participação na política e o protagonismo na vida sejam aspirações reais e socialmente celebradas para mulheres também.”

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Dilma, primeira presidente mulher do Brasil, também deixou uma mensagem às mulheres do país em seu discurso final no Planalto em setembro de 2016: “Às mulheres brasileiras, que me cobriram de flores e de carinho, peço que acreditem que vocês podem. As futuras gerações de brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, o machismo e a misoginia mostraram suas feias faces. Abrimos um caminho de mão única em direção à igualdade de gênero. Nada nos fará recuar”.

“Nada nos fará recuar”.

Ei, fale conosco!

Você pode nos indicar uma música ou banda, relatar vivências e até desabafar sobre o que quiser. Ficaremos super felizes de te conhecer!

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987 comentários em “A mulher ao longo da história”

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