Da contracultura à rebelião das mulheres

por Catharina Gaidzinski

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Foto: Reprodução.

O punk foi um movimento de subcultura e contracultura que teve origem na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos por volta dos anos 1970, e caracterizou uma das manifestações musicais mais ideológicas e revolucionárias da história. O nome “punk”, gíria em inglês, significa algo como “pessoa jovem que se comporta de uma maneira agressiva, rude e violenta, algo ou alguém sem valor ou importância.” Mas a verdade é que a maioria dos jovens que se consideravam Punks não eram realmente violentos, a não ser quando estavam nos palcos, prontos para tocar e pregar suas ideologias.

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Suas canções barulhentas eram permeadas por doutrinas anarquistas*1 e niilistas*2, além de, é claro, Power Chords*3 repletos de distorção. As letras das músicas punk abordavam desde violência, guerra e drogas, desemprego e decadência econômica à relacionamentos, sexo e amor. Já o visual diferente e contra os padrões de moda vigentes incorporava os jeans rasgados, as blusas do estilo Do It Yourself ou “Faça Você Mesmo”, repletas de símbolos anticapitalistas e anti-nazistas, cabelos espetados e coloridos, spikes, piercings, jaquetas de couro e tatuagens. O jeito de se vestir, para os punks, funcionava como uma maneira de se identificarem nos eventos e na rua, além de também uma manifestação política de suas imagens de anti-ídolos. Além disso tudo, também cultivavam as filosofias da individualidade, independência, rebeldia e pessimismo.

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Mas engana-se quem acha que o punk foi somente um movimento musical e da moda. O estilo punk funcionou como uma forma de expressão artística que englobava também as artes plásticas, o design, a poesia, o cinema e até mesmo manifestações políticas. A ideia inicial era ir de encontro com o rock progressivo, o hard rock e o fusion, mas o movimento tornou-se parte importantíssima da contracultura, muito influenciado por outros movimentos culturais juvenis, como o Mod dos anos 1950 e até o hippie dos anos 1960. Mesmo que o punk lidasse com os assuntos de maneira mais agressiva, ambos os movimentos — punk e hippie — defendiam ideologias parecidas, como a subversão do capitalismo e da violência, principalmente por se tratarem de jovens que viveram na pele as consequências da Segunda Guerra Mundial.

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Nos EUA, os assassinatos do presidente John F. Kennedy e de Martin Luther King, combinados com a Guerra do Vietnã, causaram um descontentamento nos jovens em relação ao governo da época, porque queriam se sentir seguros ao invés de ameaçados pelas instituições de poder. Enquanto sonhavam experimentar o amor, as amizades e viajar pelo país, encontravam-se numa posição de desvantagem econômica e de esperança. Defendiam, então, paz, amor e união nas causas dos direitos civis, das mulheres e dos negros, além de pregarem o vegetarianismo, o veganismo e causas ambientalistas.

A contracultura

A contracultura foi a maneira achada por esses jovens de combater a negatividade do mundo e ir contra as autoridades políticas, principalmente por meio da rebeldia adolescente e da sede por revolução. A cultura punk, especificamente, tomou como exemplo também a opressão do elitismo cultural, e foi de encontro justamente à ideia de que a música era somente para os mais ricos. Sobretudo na Inglaterra, por conta da crise econômica dos anos 1960 e 1970, a maior parte dos jovens punks era desempregado, morava nas periferias e subúrbios mais pobres e atendia à escolas públicas, criticando ativamente o capitalismo.

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David Simonelli, autor do livro “Working Class Heroes: Rock Music and British Society in the 1960s and 1970s”, publicado em 2012, observa: “Em Nova York, o punk nasceu do tédio rico; em Londres, o punk surgiu de circunstâncias verdadeiramente desesperadoras. O punk britânico é predominantemente da classe trabalhadora, e reflete a existência de intensa luta de classes na sociedade britânica, que é influenciada pela esquerda, enquanto o punk americano é definido pela ‘ausência de uma esquerda viável e do mesmo grau de antagonismo de classe’”.

A letra da canção Career Opportunities, da banda inglesa de punk The Clash, ajuda a evidenciar a falta de empregos e o descontentamento dos jovens com a crise:

“Eles me ofereceram o escritório, me ofereceram a loja
Eles disseram que é melhor eu pegar qualquer coisa que tenham
Você quer fazer chá na BBC?
Você quer ser, você realmente quer ser um policial?
Oportunidades de carreira, aquelas que nunca batem à porta
Cada trabalho que eles oferecem é para mantê-lo fora do cais
Oportunidades de carreira, aquelas que nunca batem à porta
Odeio o exército e odeio a Força Armada Real
Eu não quero ir lutar num calor tropical
Eu odeio as regras do serviço civil
Não vou abrir cartas-bomba para você
Oportunidades de carreira, aquelas que nunca batem à porta
Cada trabalho que eles oferecem é para mantê-lo fora do cais
Oportunidades de carreira, aquelas que nunca batem à porta
Motorista de ônibus… Homem da ambulância… Inspetor de passagens.”
Career Opportunities, The Clash (1977).

A canção critica diretamente a situação econômica e política na Inglaterra durante a década de 1970, citando a falta de empregos — principalmente destinada aos jovens — ou a falta de atração dos postos existentes, como o serviço militar e o trabalho em transportes públicos. A frase “Não vou abrir cartas-bomba para você” é uma referência à um antigo trabalho do guitarrista da banda, Mick Jones, que abria cartas para um departamento do governo britânico para ter certeza de que não estavam equipadas com bombas postais.

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Foi assim que a estética e as filosofias trazidas pelo movimento punk atraíram esses jovens, que não se identificavam com a cultura e com a música de suas sociedades vigentes. Queriam músicas com temas menos pretensiosos, que se aproximassem de suas realidades e cotidianos e que possuíssem críticas políticas, econômicas e sociais. Nos Estados Unidos, começaram a ganhar espaço bandas como Velvet Underground, MC5 e Stooges. Já na Inglaterra, dava-se espaço ao Sex Pistols, The Clash e Ramones. O que todas tinham em comum eram as músicas rápidas, barulhentas, com vozes gritadas e letras super diretas e críticas.

Mas e as mulheres do punk?

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No entanto, mesmo que a contracultura como um todo pregasse os direitos das mulheres, ainda era muito incomum que realmente se desse lugar a elas no movimento punk. Por mais que, no começo, o movimento tenha tomado caráter inclusivo, logo os homens — sobretudo brancos — tomaram conta da cena, e as mulheres tiveram que começar a lutar por espaço e recognição. Por conta de preconceitos, essas garotas não eram aceitas como artistas, constituindo somente como uma base de fãs. Isso porque o jeito de construir músicas agressivas não era comumente relacionado à feminilidade, e, portanto, essas jovens mulheres não eram levadas a sério e não podiam tocar instrumentos, além de sofrerem episódios de assédio e violência na cena. Isso ajuda a expor a hipocrisia do movimento, que se dizia inclusivo, mas que, na realidade, se afastava totalmente da ideologia de direitos igualitários.

Infelizmente, as coisas não parecem ter melhorado muito. Priscila Hilário, professora de bateria e musicista profissional, expõe: “Tem essa coisa de profissões masculinas e femininas, e tem muita gente que acha que o canto é uma coisa feminina. Tipo, ‘Tudo bem, você pode cantar’, mas também assim, ‘Cuidado, não vai cantar rock, cantar rock não é muito feminino, tem que cantar um pop ou um MPB’. Então, há uma certa dificuldade para uma cantora de rock, principalmente se for uma coisa mais pesada, com gutural”.

“Cantar rock não é muito feminino”.

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Através de lutas incansáveis por reconhecimento, as mulheres resistiam e continuam a resistir a essa cena musical completamente machista e dominada por homens. Foi em 1975 que surgiu, por exemplo, a banda The Runaways, comandada pela cantora Cherie Currie e pela guitarrista Joan Jett. “A Joan Jett foi uma desbravadora nesse sentido de tocar guitarra e ser rockeira”, expõe Jules Altoé, frontwoman, vocalista e guitarrista da banda paulista The Zastes. Jett e Currie também foram duas das primeiras líderes de bandas de punk formadas só por mulheres, assim como Gina Birch e Ana da Silva, líderes da banda britânica The Raincoats, fundada em 1977. Além disso, as The Runaways foram responsáveis por criarem sua própria gravadora, a Blackheart Records, já que outras gravadoras, tão acostumadas com as práticas machistas da indústria, rejeitavam seus trabalhos, que falavam, principalmente, sobre o cotidiano feminino e a luta dessas garotas, algo bem incomum para a época.

Outro exemplo dessa primeira leva de artistas mulheres que desafiaram o machismo e a misoginia na cena do punk rock foi Patti Smith, cantora americana e símbolo icônico do rock feminino, que ajudou a desconstruir a ideia pré-estabelecida pelos padrões de beleza da época que, para ser ouvida, a garota precisava vestir roupas sensuais e estar bem maquiada. Patti se vestia de maneira andrógina e também era ativista dos direitos das mulheres. Mesmo que a cena musical daquela época tivesse incluído alguns nomes femininos, como Nina Simone, elas constituíam exceções às normas. “O punk abriu caminhos para quem quisesse se impor e isso revelou grandes talentos femininos”, relata a fotógrafa Jill Furmanovsky, que fotografava estrelas do punk nos anos 1970 e 1980.

“O punk abriu caminhos para quem quisesse se impor e isso revelou grandes talentos femininos”.

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Isso também abriu espaço para o empoderamento de mulheres com o comportamento antes vistos somente nos homens: o de quebrar guitarras, bater cabeça e possuir presenças de palco icônicas, por meio de pulos e gritos rebeldes que desafiavam a ideia de que precisavam ser meros símbolos sexuais para receberem atenção do público. Elas também questionaram e recusaram as concepções de que mulheres não podiam tocar instrumentos musicais. Mesmo que realmente ainda não soubessem tocar, essas garotas não hesitavam: aprendiam tudo na prática e escreviam letras inspiradas por acontecimentos pessoais, que falavam principalmente sobre seus descontentamentos com a sociedade e problemas comuns a elas, como assédio sexual e o machismo. Desse modo, através da música e arte, o movimento

punk feminista criticou o próprio sistema adotado pela indústria musical, assim como o sistema social vigente.

Kurt Cobain (1967–1994), líder da banda estadunidense de grunge Nirvana, que surgiu no mesmo cenário feminista e art-punk das Riot Grrrls de Olympia e Seattle, apoiava abertamente a luta das mulheres na música. Em uma entrevista com o jornalista britânico Jon Savage em 1993, Kurt confessou, sobre os seus colegas de profissão homens: “O jeito que eles só escreviam sobre os seus paus e sobre fazer sexo. Eu estava começando a entender o que realmente estava me irritando tanto naqueles últimos dois anos de escola. E então o punk rock foi exposto e tudo começou a fazer sentido. Simplesmente tudo se encaixava, como um quebra-cabeças. Aquilo [o punk Riot Grrrl] expressou o jeito que eu me sentia social e politicamente”, em tradução livre.

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Por mais que estudiosos e fãs defendam que o grunge tenha surgido ali, no mesmo momento das Riot Grrrls, influenciado por bandas como Soundgarden, Nirvana, Pearl Jam e Green River, há registros de influências anteriores a esse movimento da década de 1990, a maior de todas, inclusive, uma mulher negra. “Foi a Tina Bell, nos anos 80, que começou todo o movimento grunge, e ninguém sabe quem ela é. Porque, na mente das pessoas, começou com Nirvana. Todo mundo acha que o grunge é dos anos 90, mas não é, já tinha uma movimentação com a Tina Bell, que era uma guitarrista e cantora preta. É tão forte esse apagamento histórico que eles fazem que nem a gente sabe que essas pessoas existiram, mesmo nós sendo pessoas completamente inseridas no meio”, comenta Priscila Hilário.

É evidente como a indústria da música e, em especial a dos subgêneros do rock, sempre foi pautada no patriarcalismo, no racismo e no machismo, buscando ofuscar artistas negros e mulheres que assumiam posição de destaque anterior aos ídolos da época. “Tudo que uma mulher faz já é subjugado como menos, como inferior, não importa o quê. E não é só no rock. É uma tristeza de ver”, comenta Jules Altoé. Por isso o movimento Riot Grrrl foi tão importante para a evolução do rock como gênero plural e democrático, além disso ter refletido também numa evolução da indústria musical em si.

“Tudo que uma mulher faz já é subjugado como menos”.

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“Uma coisa muito legal sobre o Riot, em específico, é o fato de muitas mulheres se considerarem Riot Grrrls e Riot Women independente do gênero musical delas. Tem minas do rap e do funk que também se consideram Riot Grrrls. Então, isso é muito legal, porque a gente vai abrindo as fronteiras do gênero musical. O rock não é e nunca foi só sobre música, é uma camada social anterior à manifestação musical daquela coisa”, explica Adrienne Reyes, especialista em música pós-graduada em rock.

Notas de rodapé:
1* Ideologia que critica o Estado e o capitalismo e se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação, seja ela política, econômica, social ou cultural, defendendo a horizontalidade dos papéis sociais e a autogestão. A palavra anarquia deriva do grego an “não” e archos “governo”, e significa, literalmente, não-governo.
2* Doutrina filosófica anti-positivista e anti-materialista, cujos principais conceitos são a subjetividade do ser, o pessimismo, o ceticismo, o vazio e a inexistência de fundamentos metafísicos para a existência humana. A palavra deriva do latim nihil, que significa “nada”. Num sentido mais amplo, o niilismo consiste na negação de princípios tradicionais como religiosos, morais, políticos e sociais.
3* Nome coloquial para um tipo de acorde que utiliza somente duas notas ao invés de três: uma nota tônica e uma quinta, assim como possivelmente as oitavas dessas notas. São muito utilizados na guitarra elétrica e nas vertentes do rock.

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