Como o movimento punk feminista funcionou no país e qual a influência dos zines para que ele acontecesse?

por Catharina Gaidzinski

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Foto: Reprodução.

Acredita-se que o primeiro zine do Brasil foi lançado em 1965 em Piracicaba, por Edson Rontani, multiartista e jornalista brasileiro que, ao fundar o Intercâmbio Ciência-Ficção Alex Raymond, começou a editar um boletim, batizado de “Ficção”, com o intuito de divulgar e analisar histórias em quadrinho e seus personagens. Rontani, nas edições de seu boletim, publicava matérias e notícias datilografadas, além de desenhos feitos por ele próprio. Mas sua criação só começou, de fato, a ser chamada de zine em 1971, quando o termo chegou ao Brasil, inspirando o autor a lançar uma nova versão do boletim intitulada de “Fanzine Ficção”.

Fanzine ”Ficção”. Foto: Reprodução.

Em meados de 1995, os zines foram incorporados na cena punk underground brasileira, principalmente a partir da criação da banda Dominatrix, uma das precursoras do movimento Riot Grrrl no Brasil e que influenciou o surgimento de muitas outras bandas femininas, como Hitch Lizard, Lava, Lâmina, Cosmogenia, Bulimia, Mercenárias e Biônica.

Banda Dominatrix. Foto: Reprodução.

“O movimento Riot Grrrl tava chegando com mais força no Brasil, então era natural que vários zines e bandas surgissem”, explica Lucia Ellen Almeida à Revista Vice, em 2016. No ano 2000, Lucia pôs em prática o Hard Grrrls, um dos e-zines mais importantes da época, que veio com o crescimento da internet no país. “Pensei que assim teria um alcance muito maior, mais espaço (consequentemente, mais conteúdo) e mais possibilidades de discussões, já que a internet, além de ser um espaço gratuito, também proporcionaria uma integração imediata entre o zine e seus leitores”, expõe.

A Hard Grrrls acabou se tornando um portal online sobre cultura punk feminista onde Lucia e suas colaboradoras redigiam conteúdos com apoio das Riot Grrrls brasileiras, como Pryka Almeida, vocalista da banda Lâmina que, na época, tinha apenas 14 anos. “Passamos a escrever sobre meninas das artes plásticas, da fotografia, sobre ONGs feministas e também sobre outros movimentos de mulheres em geral — como Movimento Negro e Católicas pelo Direito de Decidir, por exemplo”.

Cartaz do Festival Hard Grrrls de 2004. Foto: Reprodução.

Pouco tempo depois, em 2004, o site deu vida a edições do Hard Grrrls em formato de festival. De acordo com Lucia, “a ideia era materializar o site em um espaço em que as garotas pudessem trocar suas experiências, se apoiarem e curtirem um bom rock”. A iniciativa perdurou até 2006, quando o portal Hard Grrrls encerrou suas atividades. Mas foi dez anos depois, em 2016, que Lucia e Pryka sentiram que precisavam dar vida novamente ao projeto. “Estávamos conversando sobre como está faltando espaço para as bandas femininas. Tínhamos avançado muito naquela época, mas agora parece que o movimento riot está muito quieto e sem representatividade, sem um festival que juntasse todas”, explica Lucia. Por fim, as garotas realizaram uma parceria online com a Revista AZMina e voltaram a produzir seus materiais, continuando na ativa até hoje, principalmente com o festival.

Hard Grrrls Festival. Foto: Reprodução.

A partir dessas revistas, portais virtuais e eventos, essas jovens garotas brasileiras começaram a se unir para impor um espaço digno da presença feminina no rock nacional, se juntando para criarem e gravarem suas músicas e organizarem shows e eventos por conta própria. Como já dizia a letra da música Punk Rock, da banda brasileira Bulimia:

“Punk Rock não é só pro seu namorado
Punk Rock não é só pro seu namorado
Você sempre quis tocar
Você sempre quis andar de skate
Você que sempre quis, quis, quis
Você não é um enfeite
(…)
Punk Rock não é só pro seu namorado
Punk Rock não é só pro seu namorado
Faça o que tiver vontade
Mostre o que você pensa
Tenha a sua personalidade
Não se esconda atrás de um homem.” — Punk Rock, Bulimia (2018).

“A ideia do movimento Riot Grrrl é forte e foi importante para mim. Teve a ver com a formação da minha identidade, me reconhecendo, me trazendo de volta a um senso de mim mesma. A mensagem que fica quando isso acontece é ‘você pode fazer qualquer coisa’, e isso impulsionou muitas garotas a começarem suas bandas, a escrever, a fazer arte, a fazer filmes e a ser quem elas eram. Acho que o movimento pode ser lembrado como um legado que ainda faz história”, conta a diretora do documentário “Faça Você Mesma”, Leticia Marques, à Red Bull, em 2017. O documentário apresenta a história do movimento no Brasil, utilizando cenas filmadas na década de 1990 e também entrevistas recentes com integrantes das bandas pioneiras do movimento.

Zine “Emancipar”. Foto: Reprodução.

Leticia, em entrevista ao portal I Hate Flash, também conta que, com o Riot Grrrl, ela pôde aprender sobre feminismo, sororidade e sobre ser ela mesma perante o mundo: “O Riot Grrrl também me trouxe este pertencimento, um sentimento de que há outras pessoas por aí parecidas comigo e que mesmo as que são diferentes se entendem, se respeitam e se unem. As Riot Grrrls foram minha inspiração para crescer como uma garota que podia fazer o que quisesse independente de gêneros”.

Em 2018, foi gravado no Brasil um tributo ao movimento Riot Grrrl realizado pelo selo paulistano Hérnia de Discos, intitulado de “Insubmissas — 25 anos de Pussy Whipped”, no qual 12 bandas femininas participaram a fim de expor e resgatar a revolução trazida pelo Bikini Kill, que influenciou gerações de garotas a pensarem que podiam, também, ter um lugar no rock.

“Antes do Bikini Kill, as mulheres já participavam da cena pelo mundo. Exemplos disso são bandas como As Mercenárias, aqui no Brasil, as britânicas The Slits e Girlschool e The Runaways, nos Estados Unidos. Todas tiveram relevância gigantesca no que diz respeito a representatividade, no entanto, nenhuma delas trouxe o feminismo e o valor da mulher como musicista e como público como o Bikini Kill”, explica Cint Murphy — nome artístico de Cintia Ferreira — fundadora do selo e vocalista e tecladista da banda de post-punk feminista In Venus, para a Revista Vice em 2018.

A existência de bandas como o Bikini Kill, com sons e mensagens tão potentes e diretas, é de extrema importância para o movimento Riot Grrrl e para as musicistas ao redor do mundo como um todo, já que, ao pregar representatividade, ativismo feminino, sororidade e a valorização da mulher no mercado da música, mais mulheres podem ganhar força e assumir posições de protagonismo e liderança.

Priscila Hilário, pós-graduada em rock, explica: “Representatividade importa, porque você cresce numa sociedade machista, cheia de problemas, e aí só quando você está bem mais velha que você começa a entender por que você tomou essas decisões, por que você não foi fazer o que você queria fazer. Não que seja tarde demais, mas você já perdeu um bom tempo da sua vida. Só com 25, 30 que você descobre: ‘Nossa, eu posso tocar bateria. Eu posso ter uma carreira no rock, tocando guitarra ou sendo produtora’. Não estou dizendo que é tarde, mas que isso te priva de um conhecimento que você poderia ter tido muito antes. Como que você busca uma coisa que você não sabe que existe? Uma coisa que você não sabe que você tem a possibilidade de fazer? Tem muitas panelinhas, naquela ‘broderagem’, tipo, com homem compartilham, e com mulher não. Então, se você não sabe da possibilidade, você nunca vai imaginar que isso é uma carreira”.

Bikini Kill. Foto: Reprodução.

“Com 13/14 anos, conheci o Bikini Kill, que me deu todo impulso e força de manifestar todas as questões que achava errada sobre o mundo. Na época, na escola, a gente que é muito “enfrentativa” acaba se sentindo muito sozinha dentro dos ideais, e conhecer uma banda ou algo que compartilhe dos seus manifestos te leva a achar mais pessoas da sua rede. E foi assim que eu acabei conhecendo o movimento Riot Grrrl, de São Paulo. […] Louco e triste é ver que ainda hoje, tantos anos depois, como as letras dialogam com os dias atuais, o machismo que faz o corpo da mulher virar público, os problemas de relacionamento abusivos, de como feministas são rotuladas, como a pornografia influencia no modo como os homens veem as mulheres, de como os caras não ligam pra mulher gozar, etc”, explica Prika, ex-baterista e vocalista da banda feminista Lâmina, em entrevista ao portal Hard Grrrls em 2018.

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