ENTREVISTAS

Acompanhe a trajetória musical de Jules Altoé, frontwoman da The Zasters, e o que ela tem a dizer sobre as diferenças de tratamento no rock brasileiro.

por Catharina Gaidzinski

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Juliana Altoé, mais conhecida pelo nome artístico Jules, é uma multi-instrumentista formada em Administração pela FEA-USP, mestranda em Musicologia pela USP, pesquisadora acadêmica do grupo GRANROCK, professora de canto no Conservatório Souza Lima e vocalista, sintetizadora e guitarrista rítmica da banda paulista de rock The Zasters. Ela conta que sempre achou que faltavam referências de mulheres na música. Mas que, hoje em dia, conhece muito mais. “Na minha época, eu via muito TVZ, coisas bem mainstream. Então, no rock mesmo, eu não tinha muitas referências de mulheres, mas eu sempre gostei de ouvir”, expõe.

Quando Jules começou a tocar guitarra, ela demorou para perceber que não tinha inspirações femininas. “Hoje eu conheço a Joan Jett e várias outras. Mas, na época, eu não conhecia, e isso me assustou no começo. Eu falei ‘Tá, mas o que que eu vou ser então?’. É aquela coisa, nunca vi ninguém fazer, então dá aquele medo. Mas aí fui atrás, hoje eu conheço bastante e vejo que está mudando também. Teve uma evolução muito rápida até”, explica. Ju também conta que, no começo foi difícil para sua mãe deixá-la fazer aula de guitarra, já que a maioria dos professores era homem: “Minha mãe tinha medo de eu ficar sozinha na sala com um cara, então eu tive que começar a tocar com a minha amiga, na aula em dupla”.

“É aquela coisa, nunca vi ninguém fazer, então dá aquele medo”.

Foto: Reprodução.

Confira a entrevista na íntegra com Jules abaixo:

Em relação a essas referências femininas no mundo do rock, você sentiu que, no começo, teve que correr atrás, porque ninguém falava sobre?

Jules: Com certeza. Assim, já tinha o Halestorm na época, que é uma das minhas referências, principalmente de vocal. Mas, naquela época, a maioria das bandas eram boyband, por exemplo, quatro meninos tocando guitarra e sendo legais. Então, realmente, a Joan Jett foi uma desbravadora nesse sentido de tocar guitarra e ser rockeira. O Heart já existia, mas essa coisa de pegar uma guitarra e tocar e cantar é uma coisa que só vi na Joan Jett porque, no mainstream, é difícil encontrar.

Como o rock não é considerado coisa de mulher, alguma vez você já se sentiu empurrada para outro gênero?

Jules: Não, mas já ouvi sugestões do tipo ‘Por que você não é mais feminina?’ num sentido geral. Eu acho que há um medo de as mulheres serem mais agressivas, assertivas, e aí serem consideradas loucas e tal. Eu sinto que a guitarra me protege de alguma forma na hora de cantar. Me sinto mais segura tocando guitarra porque é uma questão de insegurança mesmo, de querer me impor e ter um escudo, pelo menos. Uma forma de falar ‘Eu tô tocando guitarra, me respeita’.

“Há um medo de as mulheres serem mais agressivas, assertivas”.

Como você vê a diferença de tratamento entre homens e mulheres no rock?

Jules: Eu tenho a impressão de que, no geral, tudo que uma mulher fala é muito fácil de diminuir. É muito fácil falar mal. Os caras têm essa mania até. Na nossa banda, a gente recebe comentários no YouTube tipo ‘Ah, voz desafinada’, mas ninguém fala da guitarra do Rafael. Vai falar sempre da mulher. E às vezes são comentários que não fazem sentido, é mesmo só para diminuir, não é nem uma opinião, para falar algo de valor, tipo um comentário construtivo.

“Tudo que uma mulher fala é muito fácil de diminuir”.

Mas você acha que isso se dá pelo fato de você ser mulher?

Jules: Eu acho. Eu sinto que os comentários são dirigidos mais à minha pessoa. Tudo bem, sou vocalista, provavelmente vêm mais comentários dirigidos às frontwomen e frontmen. Mas eu acho que tem um pouco de afronta. Eu não sei se falariam isso se eu fosse um cara. Não sei se eles entram em vídeos de bandas de homem e ficam falando tipo ‘Ah, canta mal’ ou então ‘Nossa, não gostei. Valeu, não quero ver’. Por que que a pessoa me manda um negócio desse? Eles se sentem muito à vontade, né? Eles têm muito esse direito em cima do outro.

“Eu não sei se falariam isso se eu fosse um cara”.

Você já chegou a sofrer preconceito por ser uma mulher que gosta de rock ou percebeu diferenças de tratamento entre você e seus colegas homens?

Jules: Sim, o que me incomoda mais são alguns tratamentos diferentes. Quando eu vou em lojas de música com o Rafa e falo ‘Tô querendo um cabo’, o cara fica falando diretamente com o Rafa. Aí eu falo ‘Tá, o cabo é para mim’, tipo, o cara totalmente esquece, nem olha na minha cara. E 99% das pessoas fazem esse tipo de coisa. Me irrita muito, porque parece que eu não entendo, parece que eu sou burra. A pessoa realmente esquece que eu poderia me interessar por um cabo, por uma guitarra. Então, às vezes eu falo ‘Eu gostei dessa guitarra’ e eles respondem ‘Ah, tem em outras cores também’ e aí eu falo ‘Não importa a cor’. Eles têm um pensamento meio raso em relação ao que eu poderia me interessar, e isso é um julgamento. É muito grave. Também já fui chamada de namorada do guitarrista da banda. Do tipo ‘Ah, paga a entrada dela, então’, e aí ele responde ‘Não, mas ela é da banda’. Então, eu já recebi algumas dessas, e é chato.

“Já fui chamada de namorada do guitarrista da banda”.

Foto: Reprodução.

Existe muito esse olhar julgador dos homens quando você vai tocar um instrumento, fazer um show ou dar uma aula. Você concorda?

Jules: Sim, é muito triste, e é um subjugamento. Tudo que uma mulher faz já é subjugado como menos, como inferior, não importa o quê. E não é só no rock. É uma tristeza de ver. Eu sinto que, cada vez mais, eu estou me incomodando com alguns comportamentos. Então eu estou refletindo bastante sobre isso. É uma coisa muito mais velada do que aberta hoje em dia, que nem racismo. Hoje em dia, todo mundo sabe que é errado. Ninguém fica falando coisas racistas abertamente. Que nem o machismo, ninguém fica falando ‘Não, mulher é uma bosta’, mas no fundo, pensa . Então, é uma mudança, mas a gente sofre muito as consequências disso, em vários aspectos.

“Tudo que uma mulher faz já é subjugado como menos, como inferior, não importa o quê. E não é só no rock”.

Você acha que o machismo na cena está melhorando e o rock feminino tem sido mais respeitado?

Jules: Eu não sei, eu sempre me incomodei com o termo ‘banda de menina’, ‘banda com mulher’, etc. Não acho que isso seja um gênero. Acho um pouco reduzir demais o que tantas mulheres, com tantas experiências fazem. Então, isso parece um jeito de colocar lá a cota.

Afinal, não existe “banda de homem”, né? Todas as bandas já são de homens.

Jules: Exatamente, e parece que nunca teve banda com mulher e agora tem. No fim, acho que é só uma forma de colocar a gente num lugar que não incomode, sabe? Eu me incomodo bastante com o mercado, com o que é proposto para mulheres. Mulheres têm que ser bonitas, tem que ser magras, etc. O Chorão, por exemplo, não é um cara tipo Ken, modelo. Ele foi uma das maiores bandas de rock que tiveram no Brasil. A mulher não tem esse privilégio de ser do jeito que o Chorão era. A mulher tem que ser linda, tem que ser magra. São muitos valores impostos que incomodam. Não acho que melhorou nesse sentido, pelo menos desde que eu entrei para conhecer mais de música.

“No fim, acho que é só uma forma de colocar a gente num lugar que não incomode, sabe?”.

The Zasters. Foto: Reprodução.

Quais são as coisas que mais te incomodam na cena do rock brasileiro independente, como mulher?

Jules: Técnicos de som são chatos no geral. Eles têm muita dificuldade de timbrar a voz feminina. Minha voz é aguda e o cara tira agudo, aí as pessoas falam ‘Ai, não te ouvi no show’, e aí eu fico ‘Ai, por que será?’ (risos). Então, acho que falta um pouco de noção. Mas, na guitarra, às vezes o cara nem olhava na minha cara e falava diretamente com o Rafa, tipo ‘Ah, ela vai ligar aqui o ampli?’, e aí eu ficava ‘Oi? Pode falar comigo’. Eu não sou um fantasma, eu estou aqui e eu sei ligar o meu equipamento. Com mulher eu fico tipo ‘Ai, não to conseguindo ligar isso aqui e tal’, e eu sei que ela não vai me achar burra. Aí tem aqueles caras também que você não pediu nada e ele vai fazendo para você, como se você não soubesse, tipo ‘Tá fazendo errado’. Outros caras de bandas também tratam mal, excluem mesmo. Uma vez, a gente ia fazer um show junto com outra banda na Kiss e o cara ficou falando com o Rafa, nem olhou na minha cara. Se eu não fosse vocalista da banda, eu ainda sou namorada dele, ainda tem esse agravante. Eu tenho a impressão de que homens admiram muito homens, mas eles não conseguem admirar mulheres. Homens têm muita dificuldade de assimilar essa estrutura de poder, que uma mulher pode estar lá no palco, que uma mulher pode estar fazendo algo que ele não está. É algo muito velado, é muito estrutural mesmo.

“Eu não sou um fantasma, eu estou aqui e eu sei ligar o meu equipamento”.

E homens, principalmente na música, veem as mulheres meramente como símbolos sexuais. Você concorda?

Jules: Tem isso também. É muito triste. Esses dias, a gente está fazendo uns anúncios nas redes sociais, nos quais eu convido o público para ouvir nossa nova música, e a maioria dos comentários, sem brincadeira, são ‘Linda, linda, linda, linda’. E eu fico até com medo, já vejo se a pessoa esquisita está me seguindo para eu bloquear, porque é muito estranho, eu estou convidando a pessoa para ouvir uma música e ela me chama de linda? Eu não estou lá para ser linda, e a pessoa entende que eu estou. Então é doente, é horrível. Parece que mulher é para isso, um símbolo sexual para estar naquele lugar. Se ela está em qualquer outro lugar, ela ainda é vista dessa forma. Ela não consegue se posicionar de outra forma nem que ela tente.

“Parece que mulher é para isso, um símbolo sexual para estar naquele lugar”.

As mulheres estão fadadas a desistir da música muito mais rápido do que os homens, principalmente por preconceitos e coisas do gênero, né? Qual o maior obstáculo que você enxerga na profissionalização musical de mulheres?

Jules: Claro. Eu vejo muitas dificuldades na forma de levar as coisas. A mulher tem filho, e aí como que continua uma turnê? Qual a estrutura que uma mulher tem para ter filho e voltar a fazer show? Um homem larga a mulher lá com o filho e continua fazendo. É muito mais barato o custo de ter um homem no casting do que uma mulher. A mulher vai ter que parar um ano para voltar a fazer show. Tudo isso acho que é levado em conta, e, apesar de fazer sentido, é zoado. Eu acho que é esperado que a mulher não tenha filho nesse meio, a não ser que a pessoa tenha muita preparação. A mulher casar e ter filhos é o que é esperado, e aí ter uma banda de rock, fazer turnê, ser símbolo sexual, não. Então, é difícil ter esses papéis que são esperados e também querer ter uma banda de rock. Por você ser mulher e conquistar o que você quer, você tem que ser a louca, você tem que se impor e ser mandona, esquisita. Os caras são todos brothers. Mesmo se eles impõem, eles são brothers. Aí a mulher faz a mesma coisa e ficam tipo ‘Que isso? Você está noiando com a coisa errada’. Eu não entendo. Mas também vejo algumas polêmicas, tipo ‘Você não pode ser mulher branca e bonita e querer fazer rock, porque a gente precisa exaltar a nossa luta social feminista com mulheres negras’. E é claro que sim, mas você não pode proibir as pessoas. Eu já ouvi tretas muito grandes por causa disso, tipo ‘Você não pode fazer rock e não ser politizada’.

“Eu acho que é esperado que a mulher não tenha filho nesse meio”.

Só o fato de você estar lá, como mulher, existindo, já é uma luta. Você não precisa necessariamente levantar uma bandeira, porque às vezes você não se sente confortável, né?

Jules: Total. É isso mesmo. A existência, por si só, já é uma resistência. O rock é um lugar para se libertar e não para ficar proibindo uma coisa ou outra. Não é isso que o rock se propõe a fazer. Você não precisa ser necessariamente político, porque o rock já é político naturalmente, pela contracultura, como foi criado.

“A existência, por si só, já é uma resistência”.

Como você acha que o machismo funciona, na prática, no meio musical?

Jules: O machismo atrapalha mulheres e divide mulheres. A gente fica criando inimizades por causa do machismo, aquela picuinha que existe entre uma menina e outra porque, na verdade, a gente está lá subjugadas. E isso não tem que existir, tem que existir a sororidade. Isso é feito pelo machismo para a gente não conseguir se unir e não conseguir se impor. Essas imposições de papéis de gênero são criadas pela sociedade para controlar a gente. E são coisas sem sentido. Ok, a mulher dá à luz, mas por que só ela tem que cuidar do filho? E por muito tempo as pessoas falaram ‘É isso’, e não é isso. Tem algumas coisas que a gente vê e fala ‘Poderia estar pior’, então a gente tem que agradecer algumas vitórias também

“Essas imposições de papéis de gênero são criadas pela sociedade para controlar a gente”.

Você possui algum ritual para amenizar esses preconceitos e empecilhos diários de ser uma mulher na música?

Jules: Uma coisa que eu adotei, que eu achei que foi muito bom, é: quando a gente vai lidar, na banda, com caras, o Rafa fala com a pessoa. Quando é mulher, eu falo. E isso melhorou muito a nossa relação com nossos fornecedores, editores de vídeo e o pessoal com quem a gente trabalha em geral. Então, fica muito mais tranquila a conversa, sabe? Foi uma defesa que a gente acabou criando mesmo, porque às vezes eu ia conversar e a pessoa entendia errado.

Indique uma banda feminina de rock nacional.

Jules: Eu estou ouvindo bastante agora a The Mönic. A gente fez a nossa música junto e aí eu comecei a ouvir bastante. Eu gosto muito de “Andy & I”.

Para finalizar, você tem alguma dica ou ensinamento para garotas que querem fazer rock?

Jules: Eu acho que a maior dica que eu dou hoje, olhando em retrospectiva, e que pode ser clichê, é: Não ter medo. Porque muitas coisas vão fazer você querer desistir, e não importa se é um cara, se é alguém da sua família ou qualquer outra desmotivação que você pode encontrar durante esse caminho. Então, acredite no que você faz e não dê ouvidos a quem não tem algo legal ou construtivo para acrescentar, que vai te fazer crescer. É importante que você acredite em você mesmo antes, porque aí você consegue fazer tudo.

“Acredite no que você faz e não dê ouvidos a quem não tem algo legal ou construtivo para acrescentar”.

Confira abaixo a música “Bittersweet”, colaboração entre a The Zasters e a The Mönic:

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