ENTREVISTAS

Entenda a visão de um homem do rock nacional acerca do machismo tão evidente na cena e quais as suas opiniões sobre as diferenças de tratamento que já presenciou.

por Catharina Gaidzinski

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Rafael Luna é bacharel em marketing pela USP, estudante do curso técnico de Música da Faculdade e Conservatório Souza Lima, professor de guitarra no Conservatório Souza Lima, pós-graduando em Rock pela FASM e guitarrista solo da banda paulista de rock The Zasters. Quando Rafael tinha aproximadamente 10 anos, sua avó comprou um teclado de brinquedo para ele e uma guitarra de brinquedo para a sua irmã. “Mas eu gostava mesmo era da guitarra da minha irmã”, conta.

Alguns anos depois, ele começou a querer tocar bateria, mas, no seu aniversário, acabou ganhando um violão, já que sua mãe preferia um instrumento que não ocupasse tanto espaço. Rafael explica que, desde o começo, sua relação com a música foi sempre encorajada pela família, mas que ele começou a sentir um desgaste maior quando decidiu praticar música profissionalmente: “Quando eu comecei a tocar rock, minha mãe não curtiu muito. E aí quando eu resolvi fazer isso profissionalmente, teve um desgaste ainda maior”.

Foto: Reprodução.

Confira a entrevista na íntegra com o Rafa abaixo:

Quais as diferenças de tratamento que você já percebeu entre homens e mulheres na música?

Rafael: Tem professores que são muito diferentes comigo e com os caras do que são com as minas. Uma amiga minha já comentou que sentiu uma diferença de tratamento com um professor. A gente estava falando da aula e ela falou ‘Ai, eu acho ele meio assim… fico meio desconfortável’. Eu sinto que rola uma parada social. Nas salas de ensaio, os caras sempre estão mais à vontade do que as minas. Toda vez que eu entrei num estúdio para ensaiar com um grupo misto, os caras sempre estavam um pouco mais à vontade, sempre mexendo mais em ampli, falando ‘Ah, a voz tá alta’. E eu mesmo só comecei a perceber isso de conviver com a Ju [namorada do Rafa e frontwoman da banda] o tempo todo. Quando eu entrei numa sala de ensaio da The Zasters, foi o clima mais diferente de primeiro ensaio que eu já tive. Foi o lugar que eu me senti mais livre para errar. Sabe, quando você está tocando no primeiro ensaio, você fica meio assim ‘Tirei as músicas novas e não posso errar’. E lá foi um lugar onde, quando eu errei, ninguém me olhou me julgando. É diferente.

“Nas salas de ensaio, os caras sempre estão mais à vontade do que as minas”.

Como isso difere de quando você tocou com homens?

Rafael: Antes, eu tocava num trio antes com dois amigos. Eu era baixista e, quando eu entrei na banda, eu estava com dificuldade em várias músicas. E aí eles me pressionaram: ‘Você vai conseguir tocar ou não vai? Porque aí eu chamo outra pessoa’, e aí eu fiquei mal. Na The Zasters, sempre foi mais tipo ‘Ah, mas você não lembra? Precisa de ajuda? Quer que eu te mostre?’, sempre foi mais compreensivo, receptivo, menos de cima para baixo e mais lateral, assim, todo mundo junto. E acho que foi aí que eu comecei a perceber mais, porque eu acho que eu devia ser assim também, que nem os meus amigos eram. E eu mudei a partir do momento que eu comecei a tocar com a Ju. Aí eu aprendi. Mudou muito a minha forma de ver e perceber. Eu não percebia essas coisas antes.

Então você diria que esse tratamento de julgar os outros também atinge os homens na música?

Rafael: Total, porque, quando você está nessa posição em que você chegou agora na banda, você fica acuado. E depois que você está à vontade, a tendência é você reproduzir isso com uma pessoa nova. Uma tendência sem maldade nenhuma, mas que acontece, e faz a pessoa ficar desconfortável. E não é nem o que você fala, é a forma. Aos poucos, eu fui conseguindo não ter essa primeira atitude de corrigir. É algo sutil, mas que faz toda a diferença. E eu só aprendi isso tocando com minas. Já toquei com muitos caras, e ninguém tinha essa sensibilidade. A Ju gosta de deixar as pessoas confortáveis. O ambiente com os caras era meio assim, você fez alguma coisa estranha? Eles vão te zoar. A The Zasters sempre foi uma banda fácil de tocar. Com os caras, isso era diferente, tinha dias que o ensaio inteiro era ruim. E eu nunca tive um ensaio inteiro ruim com a The Zasters. E eu acho isso que vem dessa leveza, desse conforto.

“Já toquei com muitos caras, e ninguém tinha essa sensibilidade”.

The Zasters. Foto: Reprodução.

Como você vê as diferenças de tratamento entre homens e mulheres no meio da música?

Rafael: Existem muitas formas que isso acontece. Tem algumas que incomodam muito, que eu fico constrangido de tão escroto que é. Por exemplo, a Ju entrar na frente em uma loja de instrumentos, ela falar, ela pegar alguma coisa na mão e aí o cara vir falar para mim assim ‘Ah, o que você está procurando?’, aí eu falo ‘Na verdade, eu não vou comprar nada, ela que vai comprar’ e ele responde ‘O que ela quer?’, tipo, meu, pergunta para ela. Teve também um lugar em que a gente subiu para passar o som, tinha um tempo bem curto e eu geralmente demoro para montar o meu palco. E aí os caras, umas três vezes seguidas, me interromperam para perguntar do baixo, e eu fiquei tipo ‘Meu, eu não sei, você está vendo baixo aqui? Eu sou guitarrista. Pergunta para ela, eu não sei’. Cada um tem o seu instrumento, eu não sei como ela faz. Ele tem que perguntar para ela. Teve uma outra vez, antes de um show, que eu estava subindo com a minha guitarra na mão, a Ju subindo com a dela, cada um com um pedal na mão. E aí eu passei e o cara falou ‘De que banda você é?’, eu respondi ‘The Zasters’ e passei. Aí a Ju chegou e ele falou ‘É 20 reais’. Tipo, tá louco, cara? Ela com guitarra na mão, igual a mim, idêntico. Eu acho que a Ju se sentiu diminuída na hora, tenho certeza.

“Cada um tem o seu instrumento, eu não sei como ela faz. Ele tem que perguntar para ela”.

Você escuta bandas femininas? Acha que é uma coisa que chega até os homens?

Rafael: Para falar a verdade, eu não conhecia muitas coisas, fui conhecer depois. Mas sou fã há muito tempo do Far From Alaska, desde aquele primeiro EP. Uma coisa que eu sinto que rola é que, dependendo do tipo de som, tipo hardcore, que é uma parada mais gritada, acaba sendo um gênero inteiro formado pela voz masculina. Eu não me lembro de ter bandas de vocal feminino naquela época, porque eu acredito que eu estava condicionado a ouvir o vocal masculino gritando, não uma mina gritando. E eu sinto isso em muitos homens, caras que olham a mulher no palco e querem ver uma mulher bonita, não uma mulher foda. E eu posso ter agido assim, mas nunca percebi. Mas a The Zasters me engajou muito nisso. A gente não curte tanto essa separação de rock de minas e caras, a gente acha que rock é rock. Mas o ideal é que metade das bandas tivessem vocal masculino e metade feminino, ou algo parecido com isso.

Além de perceber homens querendo uma mulher bonita e não necessariamente com talento no palco, você já sentiu um pré-julgamento vindo dos homens ao falar sobre uma banda feminina?

Rafael: Eu não me lembro de uma situação assim. Mas teve uma vez que aconteceu uma coisa meio estranha. A banda toda estava numa festa de aniversário, a gente estava trocando ideia e apareceu um cara e falou ‘Vocês são do The Zasters, né?’ e aí a gente falou ‘É, a gente chama de a The Zasters’. E aí ele falou ‘Ah, mas eu acho melhor vocês mudarem, porque você vê que banda grande é sempre com artigo masculino’. Aí eu falei ‘Como assim?’, e ele deu vários exemplos, tipo ‘O AC/DC, o Arctic Monkeys’. Ele deu até um exemplo de banda de mina, Halestorm, que todo mundo fala ‘o Halestorm’ mesmo. Mas foda-se, tipo, o Fresno é ‘a Fresno’, por exemplo. E é uma das bandas que eu mais curto do Brasil. Foi estranho o que ele falou, e acho que ele nem pensou que podia estar sendo machista.

Você acha que mulheres são menos encorajadas do que homens a seguirem carreira no rock?

Rafael: Eu acho que sim. Aliás, eu acho que em todas as carreiras, não só no rock, nem só na música. Tem algumas poucas carreiras que são bem povoadas de mulheres. O pessoal machista gosta de falar ‘Lugar de mulher é na cozinha’, e aí a gente vê que chef de cozinha é tudo homem. Então, eu acho que é geral isso. E eu não acho que o rock é diferente do geral. Mas geralmente as minas são todas vocalistas, é raro ver uma mina instrumentista, por vários motivos. Na pós em rock, tem duas minas que tocam, uma que toca guitarra e a outra que toca bateria. Uma delas me contou que passou por situações escrotas numa banda que ela participou, que o cara tirou ela de louca e burra só porque ela não concordava com alguma coisa que ele queria. E a outra, que tocava para caramba, estava na banda de um outro guitarrista, e eles estavam tocando uma música de cinco minutos que tinha vários minis solinhos, e ele fez todos. E eu sei que era ele que estava mexendo na produção, mas quando você está trabalhando com outras pessoas, você tem que ter noção.

“É raro ver uma mina instrumentista”.

Foto: Reprodução.

E como você acha que podemos melhorar essa diferença entre homens e mulheres no meio da música?

Rafael: No dia que a gente tocou na Kiss, com a The Mönic, o Thiago, o batera novo delas falou algo muito chocante, mas que eu achei perfeito. Perguntaram para ele: ‘Como é estar entrando em uma banda que foi sempre uma banda sempre só de meninas?’, algo assim, tipo ‘Como você se sente e como você lida com isso? Você tem que se policiar ou é natural para você?’ e ele falou ‘Cara, a gente passou muito tempo sem saber que a gente estava sendo escroto, e eu entendi faz um tempo que eu sou escroto, homem é escroto e a gente tem que tomar cuidado para respeitar as pessoas’. E, na hora, todo mundo que estava ali, olhou e falou ‘Pode crer’. O André, baixista da nossa banda, estava do meu lado e falou ‘É real’. E aí as gerações mais velhas acharam chocante.

Você concorda que a sexualização da mulher é uma coisa ainda muito presente na indústria? Acha que o público e a mídia tendem a prestar mais atenção em como a mulher está vestida, como ela se porta e se ela é bonita ou não do que de fato a música e a arte dela?

Rafael: Eu acho que sim. Acho que essa é a grande pauta. Quando a Billie [Eilish] apareceu e estourou, o som dela era muito diferente de tudo, da melhor forma possível. Aquele disco dela da capa preta de 2019 [“When We All Fall Asleep, Where Do We Go?”], eu acho que é o melhor disco do ano. E eu lembro que quando eu comecei a ver ela dando entrevista, sempre falavam das músicas, do processo criativo dela, mas também falavam do jeito que ela se vestia. Eu nunca vi o Jack White, por exemplo, dando uma entrevista e falando de uma roupa que ele estava usando, do corpo dele. Ou o Tom Morello, ou algum outro homem, nunca vi falando sobre o jeito que se vestia, se engordou ou se emagreceu. Ninguém pergunta. E a Billie fazia questão de não pôr isso em pauta. Você via que ela era claramente do tipo ‘Olha, não vou mostrar meu corpo’. E aí no pop, eu acho que é uma coisa que parece até ser um pré-requisito. Até por isso eu acho que a Billie chamou tanta atenção. Os clipes da Dua Lipa, por exemplo, são todos bem sexualizados, e a gente está tão acostumado que ninguém estranha. Aí, queria ver se o Bruno Mars faz um clipe desse, só de cueca, o que a galera ia achar. Ia ser super chocante provavelmente.

Você já presenciou ou ouviu falar de alguma situação de assédio no meio?

Rafael: Já ouvi algumas coisas, principalmente de bandas maiores, que os caras, depois do show, abusavam ou assediavam. Teve a história do Japinha, da CPM 22. Existem círculos sociais e círculos sociais entre os homens. Eu fiz marketing na USP, e, no grupo dos caras que eu conheci na faculdade, era muito comum eles vazarem nude, vídeo de mulher pelada. E aí, tudo para eles era brincadeira, se você falava ‘Olha, isso é escroto’, eles falavam ‘A gente só está zoando’, mas isso não é zoeira, é escroto. Mas, no grupo de amigos músicos que eu tenho, não acontece essas coisas. Eu nunca ouvi alguma situação que eu identifiquei como assédio. Mas já ouvi coisas escrotas, tipo namorado que trai a namorada e acha que tem direito, acha que tudo bem.

Você acha que o rock feminino está crescendo hoje e sendo mais respeitado?

Rafael: Eu acho que sim, mas eu não acho que esse ano está muito melhor que o ano passado. Eu acho que 10 anos atrás era muito pior, e daqui 10 anos vai ser muito melhor. Saiu uma notícia recentemente que as guitarras vendidas pela Fender nos últimos 2 anos foram compradas por mais mulheres do que homens. E isso é legal para caramba. Mas compensa alguma coisa? Ainda não, está muito longe. Em festival, se você pegar o número de mulheres do lineup e de homens, é muito discrepante. E o tratamento é diferente. Quando a gente chega num lugar para tocar, é muito diferente o tratamento que eu recebo e o que a Ju recebe, ou o que a Na recebe. E eu tenho impressão que o tratamento que eu recebo e o que um cara de uma banda só de homens recebe também é diferente.

“Eu acho que 10 anos atrás era muito pior, e daqui 10 anos vai ser muito melhor”.

The Zasters. Foto: Reprodução.

Você tem alguma dica para as mulheres que querem entrar no rock?

Rafael: Eu acho que autoconfiança e segurança é o que mais vai resolver. Porque as pessoas vão duvidar, as pessoas vão falar mal, as pessoas não vão gostar. As pessoas vão falar ‘Está lá porque é amiga de fulano, porque deu para fulano’. Então, o negócio é você saber o que você está fazendo, saber o que você faz bem e o que você não faz tão bem. Eu dou aula e eu tenho uma aluna mulher só, e, na mão dos acordes, ela tem muito mais facilidade do que todos os outros homens que eu atendo. Todos. E ela é a menos segura. E sempre falo para ela ‘Vai com convicção, se você acertar, vai ser maravilhoso, e se você errar, é só tentar de novo’, porque eu sinto que é uma falta de confiança só, não é falta de treino, não é falta de condição, de habilidade. Ela tem muita facilidade para os acordes, então imagina se ela tivesse confiança?

“As pessoas vão falar ‘Está lá porque é amiga de fulano, porque deu para fulano.’ Então, o negócio é você saber o que você está fazendo”.

E se você tivesse que dar uma dica para os homens para ajudar isso a melhorar, qual seria?

Rafael: Se você não tem algo bom para dizer, não diga. Se não é para ajudar, não atrapalha. O pessoal da faculdade, quando alguém falava ‘Isso aqui é machista’, eles falavam ‘Não, não é machista’, tipo, cala a boca, velho. Então, a dica que eu daria para os caras é: Fica na sua. Deixa as minas e as pessoas fazerem o que elas estão fazendo. Mas essa vai ser uma mudança forçada. Tem muito homem que sabe que tem uma situação de dominância e que não quer perder. Quando o cara vê uma mina no palco, ele acha que, para ela estar lá, ela tem que humilhar muito ele em termos de execução. Eu sinto que, se a mina não toca muito, eles pensam ‘Ah, eu podia fazer isso que ela faz’. Então, se você não tem uma coisa positiva para falar para a pessoa, não fala.

“Se você não tem algo bom para dizer, não diga”.

Confira abaixo a música “Awesome Dance Moves”, da The Zasters:

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